quarta-feira, 18 de junho de 2008

O "senhor do adeus"

Foto: www.olhares.com

Há personagens que fazem parte da nossa vida sem que com elas tenhamos trocado uma só palavra. Habituamo-nos à sua presença e são como que património da nossa vivência. Hoje apeteceu-me falar de uma destas personagens. Há já muito que lhe quero dedicar um post e hoje resolvi finalmente fazê-lo.

Escolhi-o porque passo por ele todos os dias e porque é suficientemente carismático para me roubar algumas palavras escritas. Esta personagem soube atribuir a um corriqueiro gesto do quotidiano, um significado especial e misterioso, levando-nos a pensar que tipo de vida se esconde por detrás de um aceno.

A personagem de que falo é o “senhor do adeus” uma personagem que os lisboetas conhecem e que, todos os dias desde há alguns anos, se dirige para as zonas do Saldanha (à noite) e Restelo (ao final da tarde) para acenar ininterruptamente, e sempre com um sorriso pueril nos lábios, para os carros que passam. Este ritual obsessivo, tem tanto de enigmático como de desconcertante, e se não fosse tão real poderia julgar tratar-se de um verdadeiro mito urbano.

Eu devolvo-lhe sempre o aceno e por perceber que o faço feliz, sinto-me também eu feliz. Afinal de contas, assistir à alegria dos outros faz-nos ficar contagiados por ela. Tal como eu, também os outros carros que passam se envolvem neste ritual. E é ver todos os seus ocupantes a buzinar-lhe, com braços de fora em explícitos acenos acompanhados de uma remessa de beijos e de sorrisos. O “senhor do adeus” é na realidade um senhor originador de bons afectos. E há contentamento nos seus olhos quando as pessoas manifestam esses mesmos afectos.

O “senhor do adeus” comove-me pela sua preserverança, pela simpatia que despoleta em quem passa e por emanar aquela dose de loucura que o faz estar envolto em mistério. Falo de um senhor que parece retirado de um filme dos anos 50, com uma figura que só por si não passaria indiferente, alto, esguio, de cabelo ondulado todo branco, com óculos de massa preta e porte aristocrático.


Depois de muito tempo a recorrer somente à minha imaginação para reconstruir a sua história de vida, descobri recentemente que o “senhor do adeus”, que afinal prefere ser chamado pelo “senhor do olá” se chama na realidade João, tem 76 anos de idade e o seu motivo para elevar o aceno a uma forma de vida, é a solidão com que se deparou há uns anos após a morte da sua mãe. Sente que acenar é a forma de comunicar e de sentir gente.

Por trás daquela figura alta e esguia de trajes clássicos mas marcantes, esconde-se alguém que fez deste périplo a sua razão de existir e tornou a sua pessoa num ícone da cidade de Lisboa.

A mim mostrou-me que um simples aceno tem a capacidade de me pôr bem disposta.

9 comentários:

Inca disse...

que giro, não é do meu tempo o sr. do Olá.beijinhos

Unknown disse...

Pois é, tb quando o vejo digo-lhe adeus/olá, há uns tempos vi um programa na rtp2 em que mostram o Sr. João, as suas explicações para o sucedido e até há uns rapazes que criaram um "carimbo" com a figura e aplicam-na nas paredes, especialmente no Bairro Alto.
Grande beijinho amiga*

Blossom disse...

Aqui está a prova irrefutável...tb gostas de pessoas danificadas :)
Adorei o teu comentário, acompanho o teu blog há muito tempo, e que tantas vezes me recordou a nossa amiga "rodelas de amor", com posts simples e tocantes.Bjs

Dinastia FilipiNHa disse...

Realmente, as vidas de se escondem por detrás das pessoas... Não conhecia a história...

Beijinhos e bom fim-de-semana

stardust disse...

Mais uma história de vida, e são tantas as que compõem a vida de cada um de nós e nos transformam naquilo que somos hoje.

Beijocas

Time Traveller disse...

Eu aceno SEMPRE ao "senhor do adeus"! Mesmo quando passo apé por ele, o que até é mais vulgar já que quando passo pelo Saldanha è noite é, regra geral, porque fui jantar nos arredores. E, depois, há que regressar ao carro! :)

É um senhor muito simpático. Um ícon de Lisboa, como tu dizes!

Gostava que a minha vida me proporcionasse tempo livre suficiente para pegar num bloco e numa caneta e começar e romancear a sua história :)

Kiss

Anónimo disse...

Olá,

Nunca escrevi num Blog, nem tão pouco tenho paciencia para ler os mesmos.

Mas uma conversa recente sobre o "Sr do Adeus" fez-me fazer uma pequena pesquisa, e de facto subescrevo as tuas palavras.

Conheci o "Sr do Adeus" pela 1ª vez, no dia que morreu o meu melhor amigo, tinha eu então 23 anos. Nesse dia à noite levavam-me para casa pois nem em condições de conduzir estava, e um dos ocupantes do carro disse "Olha o maluquinho!! APITA!" o condutor apitou, e ele acenou-nos, posso dizer hoje, que o Sr João Serra salvou-me o dia, houve algo particularmente reconfortante naquele aceno "analgésico".

Sem dúvida uma personagem marcante.

Anónimo disse...

No dia em que descobri que tinha falecido, emocionou-me este "relato" tão profundo e real de uma pessoa que, embora não conhecessemos pessoalmente, faz parte das nossas vidas...
Era realmente um sentimento de felicidade que sentíamos ao retribuir o aceno e alegra-me saber que ele espantava a solidão que o perseguia com a minha ajuda... num gesto tão simples...
Adeus, "Sr. do Adeus"

Anónimo disse...

Gostei muito de ler o seu post sobre o "senhor do adeus".Hoje. com profunda tristeza, soube da morte desta figura carismatica da cidade de Lisboa. Como muitos de nós , conhecia-o pelo simples facto de ele estar ali muitas vezes entre o Saldanha e Picoas, a acenar, sorrir e mandar beijos a quem lhe apitava. Era um aceno, um gesto tão simples e fugaz, mas que nos dava uma sensação tão boa. Uma estranha alegria invadia-me a alma e essa sensação acompanhava-me até ao meu destino. Apesar de nunca ter falado pessoalmente com o "sr. do adeus", sinto hoje como se tivesse perdido um amigo de longa data. A cidade de Lisboa fica mais pobre e a monotonia das viagem de carro pelo Saldanha, São Sebastião, Restelo ou qualquer outro sitio onde o "sr.do adeus" estive, não será mais interrompida com aquele gesto simpático de um estranho, que há tanto tempo nos era familiar.A cidade de Lisboa fica mais pobre.Agora, já não digo um "adeus, mas sim um "até sempre". Obrigado pelo Post. João Dias